O último voo

Escorria-me uma gota de suor pelo rosto e lá fora estava frio. Muito frio. Tinha acabado de “taxiar” e alinhar um Alouette 3 num dos heliportos da Base Aérea de Beja. Este seria o meu primeiro voo de helicóptero depois do treino elementar e básico de pilotagem em asa fixa, a voar o TB-30 Epsilon, o avião de instrução da Força Aérea Portuguesa. Ao meu lado, no lugar central, o instrutor, e no lugar da esquerda como passageiro estava outro aluno que assumiria o meu lugar a meio do voo. Esta primeira missão seria um voo de familiarização com as áreas de trabalho atribuídas a helicópteros na zona de Beja. Um voo sem avaliação, logo sem pressão.

“Estás pronto? Vá, descola”, disse o instrutor.

Descola?, pensei. Como assim? Este é o meu primeiro voo de helicóptero. Eu não sei voar isto.

Como, meu Major?”, respondi.

“Bora, descola aí, que eu dou uma ajuda”.

Este gajo é doido. Eu não sei mesmo voar isto!

Afirmativo...”.

Inicio a aplicação de colectivo e sinto o helicóptero a elevar-se nos amortecedores. Mais um pouco e estamos fora do chão. E aqui... aqui começa a luta infindável desta máquina infernal para dominar o éter do céu português.

Durante o curso teórico é-nos incutido que a mais difícil do que voar um helicóptero em linha de voo é mantê-lo em estacionário – inamovível sobre o mesmo ponto; aquilo que efectivamente diferencia um helicóptero de um avião, a sua capacidade de “parar” no ar. Mas por mais que nos digam isso, e que esperemos isso, sentir essa dificuldade é bem diferente.

Estávamos no ar. Manche para a frente e para trás. O meu braço não parava. Já não percebia se estava a tentar voar um helicóptero ou a bater um ovo. Com os pés era igual: ora vai o direito para a frente, ora vai o esquerdo. Com o colectivo, o mesmo. Para cima e para baixo. Era o maior teste psicotécnico da minha vida, e só para ficar quieto no mesmo sítio. Ora para cima para baixo, ora rodava no eixo para a esquerda, ora para a direita, e depois esquerda, esquerda, esquerda... e acabei por fazer um 360.

“Ah”, dizia o instrutor pelo meio de uma gargalhada, “pelo menos fazer uma rotação já sabes!”.

Foda-se, pensei, já não sei voar. Que máquina infernal é esta?

O instrutor, bem paciente, tomou o controlo com dois dedos no manche. Dois dedos. E o helicóptero, como que a gozar com o meu esforço, imobilizou-se no ar. Não se deslocava nem 10 cm para qualquer um dos eixos. “Relaxa”, dizia o instrutor “tens de fazer apenas pequenos movimentos”. Passámos a hora e meia seguinte a voar pela planície alentejana. Baixo. Bem baixo. E quando aterrámos pensei: apaixonei-me. Isto é fabuloso.

Foto: Rui Sousa (c)

Foto: Rui Sousa (c)

Para mim, aquele passou a ser um dos segredos mais bem guardados da Força Aérea: uma das aeronaves mais antigas, e visualmente menos sexy, era aquela que, afinal, mais gozo dava a voar. Passados anos, e depois de voar outras aeronaves, aprofundei essa certeza. Nada superava o estar sentado naquela “bolha” de plexiglass a 10 pés do solo. Voei-o como piloto operacional durante aproximadamente dois anos. E foi um privilégio. O Alouette 3 era de facto uma aeronave fantástica.

Após 57 anos de história não haverá provavelmente máquina mais icónica na Força Aérea Portuguesa, que signifique tanto para tantos, como este helicóptero de fabrico francês. Da Guiné a Timor, de Angola à costa portuguesa, de Moçambique ao combate e coordenação de incêndios, o Alouette 3 serviu de forma excepcional várias gerações de portugueses.

Hoje, o Ministro da Defesa voará nessa máquina infernal. Será um dos seus últimos voos oficiais ao serviço da Força Aérea Portuguesa e um acto simbólico de despedida.

Quem o voou, e quem nele trabalhou, não o irá esquecer. E que melhor forma haverá de nos despedirmos dele do que com um brinde. O mesmo que ecoava nos jantares da sua última Esquadra de voo, a 552: “À máquina”!

 Efectivamente, após 57 anos...

À máquina!

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Foto de capa: Rui Sousa

Esses gajos dos helicópteros

“Epah”, dizia, “não é bem assim”. Faz uns dias foi assim que respondi a um colega. Estávamos os dois no cockpit, algures sobre Espanha a trinta e sete mil pés, e falávamos de um traço muitas vezes associado ao povo português: a mesquinhez. Eu, de forma algo ingénua, ainda acreditava que aquilo seria uma reputação injusta.

 Os últimos dias provaram-me (mais uma vez) errado. Viver e aprender, como dizem os norte-americanos. Somos mesquinhos. E não é pouco.

 Após o recente falecimento de um piloto de combate a incêndios no norte do país, e pelo facto de o mesmo ser oficial piloto da Força Aérea, multiplicaram-se os comentários, manchetes e notícias sobre como pilotos militares participavam no combate a incêndios pondo em causa a sua legitimidade. “Militares tiram férias para ganhar milhares a apagar incêndios” foi, a título de exemplo, uma das manchetes publicada num jornal nacional. Às vezes, a forma como se escreve diz mais que o seu conteúdo.

Vamos lá esclarecer uma coisa: devemos ser o único país onde alguém nas suas férias decide trabalhar, em detrimento do seu descanso, em prol dos seus compatriotas e isso é visto como negativo.

Mas qual é o problema?

Porque é militar? Estava devidamente autorizado (como estavam todos) pela chefia máxima desse ramo militar, cumprindo todos os parâmetros exigidos pela lei e pela instituição militar.

Porque existem pilotos civis? A falta de pilotos de helicópteros com os requisitos mínimos para combate a incêndios, e disponíveis a fazê-lo, é tão significativa que obriga a “importar” pilotos estrangeiros, como é exemplo os elementos de nacionalidade espanhola e brasileira que neste momento voam em Portugal.

Porque é remunerado? Voar um helicóptero, com um balde cheio de água em carga suspensa, durante dez horas diárias num dos ambientes mais hostis em termos aeronáuticos, com orografia do terreno acidentada, obstáculos artificiais como postes de alta tensão, e turbulência extrema causada pelo incêndio é digno de quê? Uma palmada nas costas e um copo de água? Um “gosto” no Facebook? Uma corrente de amizade online? E, já agora convém lembrar, numa função que representa a defesa do património de todos os portugueses.

Confesso… às vezes não compreendo o que se passa na mente colectiva de quem habita este pequeno país. A Força Aérea Portuguesa não é um a prisão. Os seus militares – e neste caso concreto os seus pilotos – são elementos altamente treinados, profissionais e com valências distintas. Mas têm vidas para além da tropa. Têm famílias. Têm férias como todos nós. E sim, a sua formação é paga pelo erário público, tal como qualquer elemento da função pública ou formado pelo estado. Vamos portanto, pela mesma ordem de ideias, proibir os médicos formados em faculdades públicas portuguesas de exercer no privado? Vamos impedir um funcionário das finanças de abrir o seu negócio? Vamos impedir um bombeiro sapador de, nas suas férias, trabalhar como vigilante florestal para uma entidade privada? Vamos impedir um agente da PSP de ter um part-time se ele quiser providenciar melhores condições financeiras para a sua família?

Que diferença esta… da nossa mentalidade latina para a mentalidade anglo-saxónica onde ter vários empregos, onde trabalhar mais para “subir na vida”, é visto com admiração. E não com o escárnio e mal dizer que caracteriza a nossa reacção.

E faço aqui a minha declaração de interesses: fui piloto da Força Aérea. Fui piloto de helicópteros. Não fui piloto de combate a incêndios. E só tenho a agradecer a todos aqueles que todos os dias entram num helicóptero ou avião para combater um incêndio no meu país. E é justo o que ganham para o fazer? Claro que não. Deveriam ganhar o triplo.  

O Oficial Piloto Aviador que perdeu a vida foi Socorrista. Era Bombeiro. Era Piloto de Busca e Salvamento. Era Piloto de Combate a Incêndios. Porra, até os dois cães que tinha foram treinados pelo próprio, no seu tempo livre, para serem cães de busca e salvamento. Dedicou, literalmente, toda a sua existência à salvaguarda da vida dos seus compatriotas.

 Merecia mais de nós.

 Muito mais.

 

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Foto de capa: autor desconhecido

O primeiro



Início de Setembro, 2011, Porto Santo. Arrisco-me a dizer que é a altura ideal. O tempo, esse, é de Verão e a ilha encontra-se mais calma após a loucura de Agosto mas ainda com suficiente actividade para não nos sentirmos isolados do mundo. Encontrava-me em mais duas semanas de destacamento – mais duas entre inúmeras outras – a garantir o alerta de busca e salvamento nesta área do país. “Ao menos tinha sorte com o tempo”, reflectia. 

Na altura encontrava-me qualificado como “P – Piloto”. O chamado “P” é a qualificação intermédia entre co-piloto e piloto comandante. Significa que curso de comando está feito, voa-se à direita no cockpit – no lugar do comandante – fazendo tudo aquilo que ele faria, incluindo a parte operacional, com a nuance que do lado esquerdo se senta um comandante qualificado que nos guia e ajuda. Esta era uma forma excepcional de o piloto ganhar confiança, experiência e aprender com outros comandantes até ser “largado” como piloto comandante operacional. Na essência, um “P” era um quase comandante. E apenas passaria a tal quando todos os outros comandantes da Esquadra achassem que aquele elemento estaria pronto a assumir o comando de uma tripulação de busca e salvamento numa missão real. E isso não é uma decisão que se tome com leviandade. 

Para nós, os “P” da altura, a primeira missão real de guincho barco era um marco crucial. Seria a primeira vez que, sentados à direita, iríamos estar aos comandos do helicóptero durante uma recuperação de guincho real de uma embarcação. Real. Isso significa que nas nossas mãos estaria a vida do nosso camarada Recuperador Salvador, amarrado no guincho à mercê das nossas capacidades – ou falta delas! – e a vida dos náufragos ou resgatados que iríamos ajudar. Por mais que à nossa esquerda estivesse um comandante de pleno direito, a operação só teria sucesso se nós fossemos profissionais. A palavra “responsabilidade” tomava aqui uma outra dimensão. 


E é em mais um belo dia na ilha Dourada que toca o telefone. 

“Nunes, vamos embora. Vamos voar”, dizia o comandante do outro lado. 

A adrenalina é instantânea. 

“Foda-se. Queres ver que é desta?”, penso. 

Corro para o quarto, calções fora, fato de voo vestido, e ainda me estou a calçar enquanto cruzo a porta do quarto. 

A tripulação encontra-se à porta do hotel, entramos todos na carrinha azul – mais conhecida no Porto Santo do que Zarco ou Colombo – e partimos em direcção ao hangar onde se encontra o EH-101 “Merlin”. Este hangar, e alguns pequenos edifícios de apoio, situam-se na parte norte do aeroporto de Porto Santo, na área militar. 

Na carrinha o Comandante já tem mais algumas informações. A missão para hoje é resgatar um dos elementos da tripulação do navio “GLORIOUS DOUGLAS” a cento e trinta milhas a norte do Porto Santo. 

“Vou à direita?”, pergunto? 

Recebo um daqueles olhares como quem diz “Não, queres ver que vais a coçar tomate?”. 

“Yeup”, é a resposta exacta. 

Comigo um dos operadores de sistema (guincho) mais antigos na esquadra, um recuperador salvador de mão cheia (e grande amigo) e provavelmente o enfermeiro com mais experiência em evacuações aeromédicas em todas as forças armadas. Logo aí fico mais calmo – é mais difícil meter as patas com malta tão profissional a bordo.

O sol brilha. Cheira a praia. Motores em marcha, descolo e rumamos a norte. A caminho entramos em contacto com o Comando Aéreo da Força Aérea, em Lisboa, através de rádio de alta frequência. Recebemos mais informações sobre a posição do navio e o estado do paciente. A sessenta milhas tentamos o primeiro contacto com o navio. Informamos o mesmo que deverá alterar a sua rota para um rumo que seja trinta graus a estibordo da direcção do vento para facilitar a recuperação. Aqui vem a primeira surpresa: como estavam a rumar sul iriam precisar entre dez a doze minutos (!) para alterarem a rota. “Este deve ser dos grandes”, comentamos. Tanto tempo para uma mudança de rota, significa que seria um navio com dimensões consideráveis. Perfeito, coincidia com o nosso horário de chegada. 

O primeiro(a) nunca se esquece, não é o que dizem? (Foto: autor desconhecido)

O primeiro(a) nunca se esquece, não é o que dizem? (Foto: autor desconhecido)

E era-o. Nem sempre fui um tipo a quem a sorte sorrisse constantemente na vida. Mas nas alturas cruciais ela tem sido uma bela companheira. O navio era enorme. A área de recuperação, na popa, a maior e mais desimpedida de obstáculos que tinha visto até então. O mar, esse, estava chão. Nem um metro de vaga. E o vento era uma ligeira brisa que soprava de forma constante. Não eram só as melhores condições que tinha visto enquanto “P”. Eram as melhores condições que tinha visto em qualquer voo, de treino ou real, que tinha feito até então na Esquadra.

“Ou vai ou racha”, penso. Damos início à operação, já coordenados com o navio.

“Podes colocar o homem à porta”, verbalizo. 

“Dez à direita, vinte em frente”, diz a voz calma do operador de guincho. O Recuperador Salvador já se encontra no éter que separa o nosso helicóptero de catorze toneladas daquele navio com milhares mais. 

“Oito à direita, dez em frente”. 

Tento ser o mais suave possível nos comandos. Cíclico (o nosso manche) um pouco para a frente e para a direita, colectivo como necessário para manter a altura constante.

“Seis à direita, cinco em frente.”

Mais um pouco. “Não faças merda agora”, corre-me pela mente.

“Três à direita, um em frente”.

“Dois à direita”.

“Um à direita”.

“À vertical, mantenha!”

Asseguro as minhas referências visuais, já obtidas durante um estacionário prévio. Agarro-me a elas como um cão se agarra a um osso. 

“Mantenha... Contacto!”, diz o operador de guincho. 

Para um piloto de busca e salvamento há poucas palavras mais bonitas que aquela: “contacto”. Significa que o Recuperador Salvador está seguro no convés do navio.

“Contacto, foda-se!”, penso interiormente. O pico de stress, a colocação do homem no convés, estava feita. 

O Recuperador-Salvador efectua os seus procedimentos e prepara o membro da tripulação, de nacionalidade ucraniana, para a recuperação. O processo repete-se, volto a colocar o helicóptero à vertical da posição e à voz de “Quinze à esquerda” já sei que o Recuperador Salvador e o resgatado se encontram suspensos pelo guincho. Afasto o helicóptero da vertical do navio até estarmos suspensos sobre o oceano.

Todos dentro do helicóptero. O enfermeiro inicia o apoio à vítima. Voltamos a Sul, despedimo-nos do navio e rumamos ao heliporto do hospital do Funchal. 

Durante o voo para sul apercebo-me que “já está”. A minha primeira missão de recuperação em navio operacional a voar à direita estava feita. E tinha corrido bem. 

Aterramos em Porto Santo já ao final do dia. Vamos jantar todos e regressamos ao hotel. Assim que a cabeça toca na almofada adormeço instantaneamente. Durante esse destacamento efectuámos mais três missões operacionais de evacuação entre ilhas. E sempre a voar à direita. 

Mal sabia eu que que iria passar a voar naquele lugar de forma permanente em breve. Ganharia o meu comando no final daquele mês. 

O primeiro(a) nunca se esquece, não é o que dizem?  

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Foto de capa: Menso Van Westrhenen

Bem vindos de volta

622 980 km²

Esta é a área da República Centro Africana. Isolada no meio do continente africano este país é de uma dimensão quase idêntica à da França. Nele, e ao longo dos últimos meses, vários militares portugueses assumiram a função de Força de Reacção Rápida da missão das Nações Unidas.

Ontem, a 11 de Março, chegaram a Portugal os cercas de cento e oitenta elementos da nossa quarta força destacada, constituída maioritariamente por Paraquedistas do Exército e alguns (essenciais) elementos da Força Aérea Portuguesa.

 Aqui, a mais de quatro mil quilómetros de distância, é-nos difícil entender a enormidade da responsabilidade, da missão e do perigo por eles enfrentado. Numa imensidão de país, em terreno extremamente difícil e em condições atmosféricas infernais, aqueles pouco menos de duzentos portugueses fizeram efectivamente a diferença. Estiveram em combate por diversas vezes. Libertaram cidades e aldeias. Resgataram civis e repuseram a ordem. E fizeram-no sempre com um profissionalismo e dedicação que devia encher o peito de cada português de orgulho.

Paraquedistas portugueses em combate na cidade de Bambari. Foto via Diário de Notícias.

Paraquedistas portugueses em combate na cidade de Bambari. Foto via Diário de Notícias.

 Nós, por cá, com o bom tempo a chegar, céu limpo e uma vida tranquila, discutimos futebol, uma música do festival da canção ou novos programas de televisão. Gastam-se rios de tinta e horas de emissão com temas que, tenho de admitir, são no mínimo superficiais. Andamos hipnotizados numa espécie de ilusão colectiva que nos impede de ver – e reconhecer – aquilo que é importante e aqueles que entre nós merecem a nossa admiração.

E aqueles cento e oitenta portugueses mais do que merecem a nossa.

Haverá sempre quem critique. Quem mande abaixo. E quem interrogará sobre o porquê. Porque independentemente da razão e da legitimidade – e sim, estamos integrados numa força das Nações Unidas a cumprir um mandato internacional para protecção da integridade física de uma Nação e dos seus cidadãos – viverá sempre no meio dos portugueses um vil e ignorante “velho do Restelo”.

Mas os actos ecoam mais alto que as palavras. E, volto a repetir, num país várias vezes superior a Portugal aqueles militares fizeram a diferença. Tomara eu que muitos compatriotas meus os tomassem como exemplo. Pela garra, pelo profissionalismo e pelo orgulho de servirem Portugal. Porque é preciso alguém especial para arriscar a vida ao serviço da Nação em prol dos outros.

E vocês são-no.

Bem-vindos de volta.

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Direito por linhas tortas

Desolado. Era assim que me sentia e não existia outra palavra que pudesse definir o que me passava pela alma naquele momento. Decorria o final do Verão de 2003, e tinha acabado de saber que tinha reprovado no exame nacional de Química. E com isso no 12º ano. 

A vida às vezes tem uma maneira engraçada de nos surpreender. De nos dar a volta e de nos obrigar a olhar para o panorama geral. Provavelmente aquele ditado popular “fecha-se uma porta, abre-se uma janela” é mesmo verdade. Aquele Verão prova-o. 

Estava a efectuar o estágio de voo para a Academia da Força Aérea. Duas semanas na Base Aérea de Sintra e sete voos em DHC-1 Chipmunk. Aeronave antiga, difícil (será alguma fácil para quem está a começar?), desconfortável e com uns instrutores que tendencialmente falavam mais alto do que os meus tímpanos estavam habituados. Estaria a mentir se dissesse que estava a adorar a experiência – estava (estávamos!) todos nervosos e expectantes. Era um dos últimos obstáculos a ultrapassar se quiséssemos ingressar na Academia.

Naquela altura – provavelmente estará igual agora – podíamos dividir os nossos exames nacionais em duas fases. E podíamos igualmente anular uma disciplina e ir apenas a exame, contando essa nota como a nota final. Era procedimento normal entre os alunos anular uma disciplina com nota mais baixa e tentar a sorte no exame, tentando garantir assim uma nota superior. Era o meu caso. Estava prestes a terminar o ensino secundário com média de 14.6 e queria chegar ao quinze. Química – para o qual eu tinha tanto jeito como para tricotar camisolas de malha – iria ser a minha pior disciplina, terminando o ano com onze valores. Fruto da minha ingenuidade (a verdadeira palavra aqui é “estupidez”) de adolescente, decidi anular a disciplina e propor-me a exame na segunda fase. “Assim tiro um treze ou catorze e não me estraga a média, acabo com média de quinze”, pensava eu. Feliz e contente lá fui. E assim chegamos ao final daquele Verão. Onde nas vésperas do meu sexto voo recebi a notícia que tinha tirado pouco mais de nove valores. Choque. Tinha acabado de chumbar o 12º ano.

Eu nem sabia o que dizer. Nem sabia o que pensar. Nem sabia o que fazer. Média superior a catorze, e ano chumbado. Piloto? Jamais. Estava desolado. Como é que era possível?

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No dia em que abandonei o estágio de voo, após aquele sexto voo, o instrutor com quem voei demonstrou o porquê de todos o considerarem alguém excepcional. Pegou em mim, num trator de reboque, e andámos cinco minutos a acelerar pela placa da base aérea. Disse-me que nada terminava ali, que podia voltar a tentar, e que experimentasse concorrer para PIL (piloto miliciano) ao invés de PILAV (Academia). Era esse o seu conselho. Hoje somos colegas na mesma companhia aérea. 

Fui para casa. Acabava ali o sonho. 

Só que não. A Vida, essa madrasta, troca-nos as voltas. 

Repeti o 12º ano. Fiz todas as disciplinas que podia fazer (gato frio de água escaldada tem medo). Entrei na Faculdade, e no meio do primeiro semestre candidatei-me novamente à Força Aérea. Para Miliciano, como aquele instrutor me tinha aconselhado. Entrei em 2005. 

E a partir daí, é história. Entrei no melhor timing possível. Ganhei as asas em 2007. Voei operacionalmente uma, se não a mais, icónica máquina da Força Aérea: o Alouette 3. Qualifiquei-me em EH-101 Merlin e ganhei o meu comando em 2011. Fiz o que sempre sonhei fazer – Busca e Salvamento – e colecionei histórias para um dia contar aos netos. Vivi uma fase óptima na Esquadra 751, repleta de pilotos com espírito de iniciativa e vontade de fazer melhor e diferente. Fizemos a diferença naqueles anos. E quando saí das fileiras, fruto do final do meu contrato de seis anos, tive a sorte de entrar de imediato no mercado civil. Foi uma passagem directa. O timing, esse, foi perfeito mais uma vez. E aqui, agora, no mundo civil, reconheço a sorte que tenho de fazer parte do momento que a companhia aérea onde estou vive. 


E tudo isto porque chumbei naquele exame de Química. 


Quem diria – eu nunca! – que um dos meus momentos mais baixos foi, curiosamente, a grande razão dos meus momentos mais altos. Não fosse aquela nota, não tinha entrado quando entrei, não tinha ido para PIL como fui, não tinha voado o que voei, não tinha transitado para o mundo civil quando transitei.  Aquele exame foi, por mais estranho que pareça, uma bênção. 

Se o Ricardo de agora pudesse dizer algo ao Ricardo de então, do final daquele Verão, diria “não te preocupes”. Ele não iria acreditar, estou certo. Mas a verdade é que “tudo vai correr bem”. 

E correu. 

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Ou chumbas ou desistes

As paredes eram brancas. Aquele branco sujo, tão típico de edifícios militares. Um cheiro familiar mas que não conseguia identificar pairava no ar. Pó, mofo, algo do género. 

À minha frente uma mesa, castanha, antiga e em mau estado. Uma câmara de filmar, com aquela luz vermelha insistente e irritante, e o seu operador militar,  não me recordo do posto. À minha frente, sentado na mesa, um Major do Centro de Psicologia da Força Aérea. Um Major que era temido por todos nós: cabia-lhe a ele a decisão final sobre se continuaríamos ou não a lutar pelo nosso sonho. 

À sua frente duas folhas de papel. 

“Sente-se Sr. Nunes.”

Era quarta-feira. O dia estava solarengo. Uma brisa fria, tão típica daquela zona, soprava do lado do mar. Encontrava-me na Base Aérea nº1, arredores de Sintra, em pleno estágio de voo para o curso de Oficial Piloto. O estágio de voo tem a duração de uma semana e é desenhado para testar a capacidade do candidato (vá, mancebo!) na sua adaptação à vida militar, ao stress, pressão e claro à fisiologia de voo: para isso iríamos efectuar vários voos em DHC-1 Chipmunk. Comigo outros dezasseis candidatos. Muitos deles tornar-se-iam meus camaradas de curso e, também, meus melhores amigos. Nessa altura ainda não o sabia. 

Já tinha concorrido à Força Aérea dois anos antes. Na altura consequência de uma nota em um exame nacional do ensino secundário – fruto da minha estupidez de adolescente – viria a abandonar esse concurso para a Academia da Força Aérea, já no último dia do estágio de voo, tendo efectuado seis voos porreiros (por porreiros quero mesmo dizer penosos!). Mais tarde concorreria novamente, mas durante a fase de admissão – e ouvindo o conselhos de alguns amigos – alteraria a minha candidatura de PILAV (Oficial de Academia) para PIL (Oficial em regime de contrato, os antigos milicianos). E aqui estava eu. Sentado naquela mesa. 

“Então Sr. Nunes... temos aqui um problema”. 

As palavras daquele Major atingiram-me como um raio. Lembro-me bem do sentimento de medo instantâneo que me percorreu a espinha. Dali não vinha coisa boa. 

“Tem duas opções” dizia o Major enquanto deslizava as duas folhas de papel para a minha frente “Ou chumba, ou desiste. Agora escolha.”

Eu, perplexo, não conseguia proferir nem uma sílaba. Tinham apenas passado dois dias, não tinha metido as patas em nada, pensava eu. Nem sequer tinha voado, aí não meti de certeza. Não percebia o porquê daquela situação. 

“Oiça lá. Você não ouviu o que eu lhe disse? O seu caminho acabou aqui, ou chumba ou desiste. Agora escolha”. 

“Mas... Sr. Major, fiz algo de errado?”

“Mau. Leia os papéis e escolha. Assine e vá à sua vida que não tenho tempo para isto.”

Naquela altura – agora também provavelmente – existia uma significativa diferença entre as duas situações. Se um candidato desistisse este poderia concorrer novamente no próximo concurso. Se chumbasse a situação era outra: como o candidato tinha sido considerado inapto para a função teria de suportar um longo período de carência até puder voltar a concorrer. O que no meu caso, com vinte anos, era o mesmo que dizer que acabava ali o sonho. Desistir era, à primeira vista, a melhor solução. 

“Sr. Major peço desculpa, mas pode-me dizer o que fiz?”

“Mas você é surdo? Escolha. Ou chumba ou desiste. Eu não tenho tempo para isto...”

Esta discussão semi-amigável durou talvez uns quinze minutos. Ou vinte. Ou cinco. Não sei. O meu espanto e nervosismo provavelmente influenciaram a minha percepção do tempo. Comecei a responder de forma mais acesa, até que já resignado e claramente farto disse: 

Alturas houve em que o autor tinha pinta!

Alturas houve em que o autor tinha pinta!

“Você chumbe-me. Chumbe! Eu desistir não desisto. Daqui não saio por minha vontade. É o meu sonho. Agora chumbe-me!”

Esticou-me a mão.

“Parabéns. Bem vindo à Força Aérea”. 

Devo ter ficado uns bons trinta segundos a digerir aquelas palavras. 

Ali, naquele momento, com vinte anos, aprendi uma das maiores lições da minha vida. Não. Vivia-a: nunca desistir. 

Nunca. 

Passados anos tornei-me amigo desse Major, então Tenente-Coronel. E ele bem que se lembrava do episódio. Soube então que perante as minhas alterações de curso enquanto concorria e a minha anterior desistência eles não estavam certos da minha vontade e resiliência em ser piloto. A adaptação ao voo já a tinha feito dois anos antes. Se eu, naquele dia, naquela sala tivesse dito “Desisto” era exactamente isso que tinha acontecido. Tinha saído por aquela porta e voltado a casa. E hipotecava certamente as as minhas hipóteses de ser piloto militar de forma permanente. 

A Força Aérea não procura super homens. Procura homens e mulheres que não desistem. Que, mesmo perante o impossível, o imprevisto e o impensável continuam em frente. A missão é para se cumprir. E se não houver essa resiliência é garantido que um candidato nunca sobreviverá às incontáveis privações, exigências, stresses e pressões de um curso de pilotagem militar.  

Ainda hoje levo comigo o sentimento que vivi dentro daquelas quatro malditas paredes. E esse sentimento, para mim, tornou-se sagrado. 

Por mais difícil que seja a situação. Por mais complicada que possa parecer a solução. Por mais na merda que um tipo esteja. Por mais perdida que seja a situação... Um tipo não desiste. 

Pode falhar. Mas desistir nunca

Nunca.  

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Jeito estranho

A Vida tem um jeito estranho, mas fabuloso, de nos brindar com coincidências. Daquelas que nos fazem exclamar "cum catano".

Era eu um cachopo, faz mais de quinze anos, e na minha cabeça germinava pouco mais que "aviação". Era um fanático. Livros, revistas, vídeos (VHS existiu e não é mito, para a malta nova!). Todos eles cruelmente espalhados lá por casa. A internet - essa invenção estranha com um dispositivo estranho que imitia um som estranho - estava no seu auge. O cachopo tinha tempo livre e portanto, num raro momento de clareza intelectual, decidiu dedicar-se a aprender um pouco de "webdesign" e "photoshop".

Aliando uma coisa a outra (a aviação e a recém adquirida capacidade de criar um sítio na World Wide Web) surgiu a primeira página de internet dedicada a uma Esquadra de voo da Força Aérea Portuguesa. O Falcões.net.

"Bom uso do meu tempo" pensava eu. Pacientemente e de forma ardilosa lá tentava dar conteúdo à página. Pedir umas colaborações aqui, arranjar umas fotos acolá, "inventar" uns textos. Aquele mundo para mim estava tão longe como Marte. E aquela era a forma que encontrei de reduzir um pouco essa distância.

Até que um dia abro a caixa de correio (electrónico). Ali, a negrito, estava um e-mail de alguém que não conhecia. Que raio! Onde foi aquele indivíduo buscar o meu e-mail.

Ao abrir o mesmo a surpresa: aquelas linhas, ali à minha frente, foram escritas por um piloto daquela Esquadra. E a acompanhá-las, algumas espectaculares fotos ar-ar de uns F-16 nacionais. Tudo cedido para publicação na página.

Não é tão bonito como um EH-101. Mas também não é feio! 

Não é tão bonito como um EH-101. Mas também não é feio! 

Compreendam a mentalidade de um puto de treze anos. Para ele aquilo representava o mundo. Um dos gajos que ele mais admirava - um piloto militar! - tinha perdido parte do seu tempo para lhe enviar um e-mail! A ele! A mim! Naquele dia deitei-me com um sorriso de orelha a orelha.

E os anos passam. Passam rápido, aliás. A página continua cá, eternamente alojada nesta imensidão de informação electrónica, como que a relembrar-me que, um dia, até fiz umas coisas porreiras.

E os anos passam. Mas hoje foi diferente. Hoje foi o dia em que eu, já com alguns cabelos brancos, voei com esse mesmo piloto que me enviou esse e-mail faz mais de uma década. Caramba. Quem diria!?

A Vida tem um jeito estranho... mas fabuloso, de nos proporcionar estes encontros do destino.

O puto de treze anos estaria a sorrir neste momento.

Aliás. Está mesmo. :)

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ALEX

Os Açorianos encaram o mau tempo como um piloto encara a turbulência. Inevitável. Algo chato mas inerente à vida insular. Sem fuga possível. Habituados a ter as quatro estações do ano num só dia, o de hoje não havia de ser diferente. 

Alex. Que porra de nome para um furacão. 

Foto (c) Força Aérea Portuguesa

Foto (c) Força Aérea Portuguesa

Todos nós – pelo menos deste lado de cá da “banheira” – reagimos com, no mínimo, alguma indiferença. Mais uma tempestade. Certamente comum para o Atlântico central. Só as ocasionais reportagens televisivas nos fazem reflectir um pouco mais.

Quando servi na Esquadra 751 dizíamos entre nós, com orgulho e típico peito inflamado de aviador militar, que “quando mais ninguém voava nós íamos lá”. Rodas no ar. A enfrentar cruelmente os elementos com uma máquina que a cada rotação do rotor nos pedia furiosamente ar mais calmo. 

E no presente não haveria de ser diferente. Com orgulho, não, com muito orgulho, vejo que hoje, nos Açores, quando mais ninguém voa, eles estão lá. A voar. De ilha para ilha. Sem questionar. Sem hesitar. Sem por em causa que aquela, a mais nobre das missões, merece o melhor que cada um deles tem para dar. 

Gajos que, no preciso momento em que escrevo estas linhas, estão na ilha das Flores a aguardar a ordem para regressar com a mais preciosa das cargas: uma vida humana. 

É bom que não esqueçam isso. Quando um dia, por qualquer razão que seja, se lembrarem de os criticar – por serem militares, por serem os “chulos”, por serem uns “inúteis” – lembrem-se que quando um furacão chega, quando as barras marítimas fecham, quando os aviões ficam no chão, quando tudo está mesmo na merda... eles estão lá... 

...Eles estão lá.

E não pedem nada em troca. Não pedem, mas merecem

Nem que seja o nosso mais profundo respeito

Bom voo camaradas. 

(c) Esquadra 751

(c) Esquadra 751

(c) António Tavares

(c) António Tavares

Defesa aérea

(Escrito a 31 de Outubro 2014)

“Mas o que é que vocês fazem na tropa?”. Perdi a conta às vezes que ouvi esta pergunta. 

E, como eu, estou certo que todos aqueles que lá Serviram se viram deparados numa altura ou outra, com comentários semelhantes. Pacientemente – coisa às vezes rara na minha pessoa – lá tentava explicar tudo aquilo que fazíamos. Ou parte. Ou nada . Às vezes limitava-me a beber mais um golo naquele Gin fresquinho. Não valia a pena. 

Foto: Força Aérea Portuguesa

Foto: Força Aérea Portuguesa

E estando na Força Aérea surgia, mais tarde ou mais cedo, um “porque é que Portugal precisa de F-16? É para vocês brincarem?”. 

Bem. Parece que esta semana já ninguém pergunta se querem brincar. 

Acordei com a música “Russians” de Sting na cabeça. As (muito) recentes notícias da presença de aeronaves russas nas zonas de responsabilidade portuguesa – e consequente intercepção pela Força Aérea Portuguesa das mesmas – veio como que acordar alguns compatriotas. Pondo de parte o excessivo mediatismo e alarmismo de algumas notícias, a utilidade de ter um sistema efectivo de defesa aérea deixou de estar em causa. Afinal não estamos naquele canto seguro da Europa. Afinal é possível entrar em espaço aéreo de responsabilidade nacional. Afinal convém ter malta treinada para isto. Daquela que custa muitos milhares a treinar. 

A efectiva ameaça militar destas incursões é baixa. Mas é representativa de como em geopolítica se joga um bom poker. Ou xadrez no caso russo, como dizia Kissinger. Portugal tem de definir politicamente – de uma vez por todas – qual a posição e qual a capacidade que queremos ter no mundo presente. Se queremos ser jogadores de xadrez, ou se queremos estar na plateia a contar os minutos. Em geopolítica não existem espaços vazios. Não existe o zero. O vazio. Se não formos nós a ocupar – e a defender – o nosso espaço alguém o fará por nós. Se não forem os nossos F-16 serão os F/A-18 espanhóis. Ou os EF2000 ingleses. E aí não faltariam aqueles que criticariam a nossa falta de capacidade. Os mesmos que provavelmente agora criticam o facto de ela existir. Paradoxo nacional.

Temos a maior zona de responsabilidade aérea – e naval – de toda a Europa. A nossa plataforma continental está prestes a tornar-se gigantesca. A nossa ZEE é imensa. E o que é nosso deverá ser defendido por nós. Com Homens. Com treino. Com equipamento. Esse que dizem que sai caro. No mar, no ar, ou em terra. 

Quando alguém me pergunta, indignado, “porque raio temos 2 submarinos?” eu geralmente respondo “Epah, também não entendo, devíamos ter quatro!”. 

E quatro era pouco. 

Homenagem

(Escrito em Janeiro de 2015)

Acabo de ver o filme “American Sniper”. Pondo de parte o presente “americanismo” a parte final do filme (início dos créditos) fez-me fazer um paralelismo com a realidade nacional. Na forma como nós, portugueses, honramos quem serviu o seu país. 
 

americansniper


Faz um anos, ainda era eu oficial da Força Aérea, fui nomeado para comandar um pelotão na guarda de honra em um funeral de um General que tinha falecido. Verdade seja dita, para nós, pilotos, este género de serviço eram tudo menos desejado. Queríamos voar, voar e voar. Os nossos treinos de ordem unida era tudo menos frequentes. Mas antes de pilotos éramos militares. E ainda bem que assim o é. 


No dia estabelecido lá estávamos. Dois pelotões, impecavelmente formados, à entrada do cemitério do Alto de São João. Na hora estabelecida – e estando a urna a escassos metros da entrada do cemitério – a polícia parou o trânsito e formámos na estrada para prestar a devida homenagem com três salvas de G-3. 
Qual não é o meu espanto quando um popular, sentado na paragem de autocarro mesmo ao lado da formatura, começa a vociferar a plenos pulmões a sua indignação. “É uma vergonha” dizia. “o que é que aquela pessoa tinha a mais que ele para estar aquilo ali montado”. “Estou à espera do autocarro e quero ir para casa”. Entre outros comentários bem menos agradáveis. 
É-me impossível de descrever a raiva que me invadiu naquele momento. Vinda do mais fundo do meu ser. Daquela que nos consome. Que nos faz morder o lábio. Mas a disciplina e a rigidez militar fez que não me mexesse. Que não abrisse a boca. Nem eu nem nenhum dos militares ao meu lado. E prestámos a nossa homenagem. Não demorou mais do que três minutos. Três minutos que alguém não estava disposto a abrir mão como sinal de respeito a alguém que serviu o seu país durante mais de 40 anos. Alguém que lutou pela sua Pátria. Alguém que viveu em combate em meu nome, em nome de todos nós, em nome da nação. 

A forma como tratamos quem nos serve a todos, como país, adefine-nos como povo. Militares, polícias, bombeiros, são tantas vezes injustamente acusados em praça pública. São os chulos. Os que nos “roubam o dinheiro dos impostos”. Quando na realidade estão lá, no duro, todos os dias, dispostos a dar o melhor de si por todos nós. E mesmo que esse respeito não existisse em vida, ao menos que existisse na hora da partida...

Vejo o final do filme. Aquela homenagem nunca seria possível no meu país. E relembro aquele momento de há anos. Baixo a cara. Desta vez não de raiva. Mas de vergonha.